terça-feira, 8 de março de 2011

A novela valenciana continua

A novela valenciana não tem fim (não vou me arriscar a dizer que terminou agora que já estou no aeroporto, no portão de embarque esperando o avião).

O capítulo de agora é a volta, após dois dias muito agradáveis. Vôo às sete da madrugada, primeira tarefa é acordar. Cumprida até que com facilidade, pois estava sonhando algo não muito bom. Valência tem metrô até o aeroporto, com horários bem definidos. Cheguei na estação, ninguém, nenhuma alma viva e uma máquina. Supostamente, esta máquina é uma das coisas que garante ao espanhol seus horários de trabalho que começam às dez da manhã.
Vamos lá, interagir com a máquina. Até que não costumo me dar mal com elas. Li as instruções em espanhol e inglês, para me garantir. Bilhete só de ida, já tinha o cartão, era só recarregar, mas isso não importava tanto, o que não queria era perder o próximo trem.
Escolhi o bilhete só de ida, insira o dinheiro. Abri a carteira, saquei uma nota de 20,00, coloquei no local indicado, a máquina engoliu e devolveu, intacta: solo notas de 2, 5, 10 e monedas. Mesmo que na máquina esteja escrito que aceita notas de 20. Caralho, mas que porra, exclamo educamente.

Abro a carteira, procuro moedas, notas menores, nada. Mudo de máquina, repito o processo. Nada. Abro a carteira, não é possível, devo ter algo. Acho uma nota de cinco. Fantástico, cabra de sorte, coloco na máquina, ela responde, dá-me o bilhete e ainda estou 5 minutos adiantado. Passo o bilhete, a porta se abre. Sucesso absoluto, sinto-me um vencedor, as máquinas não vão me dominar.

Entro, vou a outra máquina comprar água. Uma máquina não padrão, sem aquele furo normal de colocar moedas. Estudo a máquina, ela me estuda. Mas como tiro uma água desta fiadaputa? Tento de um jeito, coloco uma moeda de 2 euros em um lugar que parece feito para moedas, mas não muito (fechado, será que a máquina só começa a trabalhar às dez também?). Coloco a moeda, levanto a alavanca - vai, máquina, engole a moeda - procuro a etiqueta "moedas aqui", nada. Tento tirar a moeda, não consigo. Máquina fiadumaroncaefuça, ainda vai me roubar? Dou-lhe uma porrada na alavanca. Escuto o barulhinho de máquina que come moedas e no visor aparece: 2 euros. Desconfiado, aperto o botão da água. A máquina, tranqüilamente, entrega-me uma água e o troco. Sucesso absoluto, é o triunfo da humanidade em relação às máquinas, tudo posso naquilo que me fortalece.
Já sabedor que as portas não são automáticas, abro a porta do trem, sento e vou escutando Beethoven que toca no ambiente.

Chego ao aeroporto, dirijo-me à saída. Por aqui, tens que passar o cartão na entrada e na saída. Passo o cartão, nada. Deve ser o outro cartão, nada. Mudo de catraca, nada. Enfio no outro buraco, nada. Puta que pariu, não é possível, vou pular esta porra, tenho um avião. Olho para os lados, nenhuma alma viva, somente as câmeras do grande irmão, dizendo-me "brasileiro pilantra, estamos te vigiando". Tenho certeza que não tem um puto do lado de lá olhando as câmeras, afinal, começam às dez. Tenho tempo ainda, vamos tentar a saída institucional.
Vejo a placa dizendo que devo procurar o interfone, caso tenha algum problema. "Chame o interfone e espere ser atendido". Tá, aperto o botão e fico lá esperando, esperando, nada. 5 minutos, dilema do ponto de ônibus - quanto mais espero, maior a chance do ônibus que faz o caminho mais curto passar, ou seja, quanto mais espero, maior a chance do cara atender quando eu sair para buscar outra solução. Não me atendeu, fui falar com o maquinista. "Tu tienes que hablar en el interfón.". "Pero no me atienden". Faz uma cara de "sou o único desinfeliz que trabalha neste horário de cabrón". Voltei ao interfón, nada.

Quando chegar o outro trem, peço ajuda. Chega o próximo trem, converso com a primeira pessoa que desce. Ela me disse que aquele bilhete era para a linha A, aquela era a B. Fala com alguém, responde ela e olha ao lado, observando que não há ninguém.

A mesma cara de "não posso fazer nada, ninguém está aqui às 5 da manhã". Faço cara de coitado, e digo "tengo un vuelo". "Venga, pase junto". Passo, a catraca se fecha bem na hora que vou passar, tenho que forçá-la um pouco. Olho para trás, um guarda, observando tudo. De onde apareceu aquele filho de uma rapariga, que procuro há 15 minutos? Ferrou, vou preso por não pagar. "Perdón, pero no consigo salir, nadie me atiende en el interfón, tengo un vuelo, no puedo perder". "Pero tienes que pagar", me responde. "Sin problemas, yo pago y ya pagué, pero no consigo salir", e mostro a ele o comprovante, pensando "mas que carajo, cabrón de mierda, donde estaba tu quando te procuré?".

Ele vai comigo até a máquina, faz os procedimentos da máquina, escolhe a opção que eu devia ter escolhido. "Ponga el dinero", diz-me com aquele bom humor de quem é a única pessoa em todo um país trabalhando às 5h da manhã. Saco aquela mesma nota de 20,00 e adivinha: não aceita. "En la otra máquina.". Nada. Ele sai de perto enquanto eu procuro o troco da água e do outro bilhete.
Encontro, dá certinho, a conta exata do que tinha que pagar. Procuro o guarda, e digo "tengo monedas!".

Vejo, então, aflorar no guarda um sentimento de solidariedade que une a humanidade contra as máquinas. "No voy recargar, váte.". "Pero tengo las monedas...". Ele me olha, como quem diz some daqui, pega seu vôo, azar da máquina que não aceita nota de 20,00, azar do metrô que me selecionou para ser a única pessoa de toda a Espanha a estar acordado trabalhando.

Entendo o que me diz, agradeço com o olhar, viro as costas. Vou até a máquina mesmo assim, escolho a opção do bilhete correta, insiro o cartão, coloco as moedas, pego o comprovante. Bilhete pago e vão todos a merda, máquina, metrô, câmeras, guardas, linha A, B. Não quero dever um centavo a esta porcaria. Mais um sentimento de superação e júbilo.

Ajudo um africano que me pediu ajuda, com as mesmas dificuldades na interação com a máquina que tive até ali, compro para ele o bilhete correto com meus conhecimentos recém-adquiridos, desejo-lhe boa sorte e vou para o check-in, pegar o teco-teco movido a um liqüidificador de duas hélices.

2 comentários:

  1. A teoria da abiogênese, tão malhada pela comunidade científica, explica a aparição da espécie "guarda espanhol", que brota quando quer que um ato ilícito seja associado a uma ou mais pessoas. Trata-se do estado da arte da biologia, pois o guarda apenas aparece quando deve cumprir sua função natural.

    O problema é que se essa espécie existisse no Brasil, teríamos rápidamente três guardas espanhóis ou mais para cada habitante. Além de todos os problemas de superpopulação, falta de moradia e outros que isso acarretaria, veríamos uma evolução tipicamente darwinista da espécie: ela iria começar a aparecer também quando as pessoas fizessem coisas da maneira certa, honesta e idônea para cobrar "o deles de cada dia". Imagine só no que isso iria dar...

    Por enquanto, no Brasil, a espécie mais semelhante ao guarda espanhol que se tem notícia é a do vendedor ambulante (Vendedoris errantium), que consegue brotar imediatamente quando há qualquer concentração excessiva de pessoas ou veículos. Cheguei a essa conclusão certa vez quando peguei um congestionamento no meio da estrada Santos-Guarujá, onde só havia mangue para todos os lados. Eis que me aparece um rapaz vendendo água do meu lado. Só podia ser um milagre, ou as teorias antigas não estavam tão erradas assim.

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  2. Rogério vc é um comediante nato.. me diverti lendo os dois posts.. vou continuar a leitura rs

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