quarta-feira, 27 de outubro de 2010

O que significa "privatizar o pré-sal"?

1. Os interesses em jogo no pré-sal
Quando eu conheci a proposta do novo modelo de exploração do pré-sal, em uma reunião do governo, falei para meus amigos que, se aprovado no Congresso tal qual proposto, já teria valido a pena meu voto em 2006 no Lula. Por que? Porque manter o marco regulatório existente era o caminho mais fácil, com menos resistências e o mais lucrativo para o governante de plantão, e não foi o caminho seguido porque ele não era o mais adequado para que o pré-sal seja fonte de desenvolvimento econômico e social do país.

Imagine que você seja o Presidente do Brasil, país que acaba de descobrir milhões de barris de petróleo e está em suas mãos decidir o que fazer. Você tem interesses políticos imediatos, interesses partidários e outros. Você já tem um modelo de exploração consolidado, aceito e que tem funcionado razoavelmente bem. A indústria mundial de petróleo é ávida por novas reservas, pois é isso o que dá riqueza a elas. Quanto maior a reserva de uma empresa, maior o seu valor comercial, maior sua capacidade de alavancar recursos, maior a sua competitividade.

Se você, enquanto presidente, fizer um cálculo político rápido e priorizar seus interesses mais imediatos, a resposta mais racional é: chame todas as empresas de petróleo do mundo, organize leilões das reservas descobertas. Supondo que haja uma concorrência no mercado, como as empresas sabem que há petróleo em grande quantidade e boa qualidade, elas estarão dispostas a pagar um bom preço para agregar aquele petróleo às suas reservas. Os leilões serão um sucesso, o governo arrecadará bilhões de dólares imediatamente, podendo, ainda no seu próprio mandato, investir recursos e, assim, assegurar sua eleição e a dos seus pares. Além disso, quando houver a exploração do petróleo, ainda receberá impostos e royalties. Um grande negócio, que passaria por cima das críticas. Até um operário analfabeto que fosse presidente seria elogiado nesta situação.

Se o presidente quisesse faturar ainda mais, mesmo que transgredindo a linha da ética, ele poderia chamar as empresas de petróleo do mundo e colocar um bode na sala destas empresas e vender a retirada do bode. Bastaria uma viagem aos EUA e um encontro com as grandes empresas de petróleo do mundo. Ele chega nesta reunião e diz: “como todos sabem, o Brasil encontrou milhões de barris de petróleo. Estou pensando seriamente em mudar o modelo de exploração de forma a dar maiores poderes ao governo brasileiro e à Petrobrás sobre o pré-sal. O que vocês acham da idéia? Estou disposto a ouvir ‘argumentos’ contrários à mudança.”

Quanto vocês acham que as empresas mundiais de petróleo estariam dispostas a pagar para poder se apropriar do petróleo brasileiro sem o governo encher o saco, no ritmo em que quiser, quando quiser e como quiser, tal qual no modelo de concessão vigente? Seria dinheiro suficiente para que o presidente, os amigos, os parentes, e as gerações vindouras dele tivessem uma vida nababesca. Pensando politicamente, seria financiamento de campanha para sempre, seria a manutenção no poder.

O governo Lula, no entanto, não seguiu o caminho mais fácil e lucrativo, até mesmo para ele. Contrariou interesses poderosíssimos de toda a indústria mundial do petróleo, das grandes potências mundiais, dos países produtores de petróleo. Para todos estes, o mais interessante é o modelo de concessão porque o petróleo não é apenas os recursos que vêm dele. Petróleo é poder. Ter reserva de petróleo é poder. Ter condições de escolher se produz 100 mil ou 3 milhões de barris de petróleo por mês é poder. Escolher se vende o petróleo para o país A ou para o país B é poder. No modelo de concessão, todo esse poder está nas mãos do vencedor do leilão. Se o vencedor do leilão é uma empresa americana, os EUA podem, em um momento de baixo preço do petróleo mundial, combinar com a empresa para que ela abasteça o mercado americano com petróleo do Brasil, deixando suas reservas intactas para um futuro de escassez e, possivelmente, de maior preço. A PDVSA, estatal venezuelana de petróleo poderia também ganhar um leilão e vender todo o petróleo brasileiro para ajudar a financiar a construção da bomba atômica para os iranianos. Ou pior: a Venezuela poderia utilizar o petróleo do pré-sal para implantar o socialismo em toda a América do Sul para, daí, dominar o mundo.

O governo Lula decidiu: vamos alterar o modelo. E o presidente disse: 1) quero um modelo que evite a concentração das riquezas do petróleo nas mãos de poucos; 2) um modelo que permita aumentar a influência brasileira na geopolítica mundial; 3) quero que o pré-sal seja de todos os brasileiros, que desenvolva o Brasil.

Mas na verdade, conhecendo nosso presidente ele deve ter usado alguma metáfora: “Companheiros, fizemos um bolão e ganhamos na mega sena. O bilhete tá comigo, até pensei em fugir e até deixar a Marisa pra trás e torrar essa grana toda. Mas companheiro é companheiro, vamos dividir igual pra todo mundo. Escutem: a gente não pode gastar todo o dinheiro com cachaça, carro e mulherada e acordar daqui a alguns anos pobre de novo. Nós temos que garantir o futuro nosso, de nossos filhos, de nossos netos, bisnetos. Eles não precisam comer o pão que o diabo amassou como a gente. A gente tem que garantir que eles vão poder estudar, ter saúde, trabalhar, ter o dinheirinho deles para ir com a mocinha no cinema, pagar um sorvete e coisinhas mais. Eu quero que vocês pensem no pré-sal assim, como o bilhete premiado que vai garantir a todos os filhos, netos e bisnetos as oportunidades que muitos brasileiros não tiveram. Vamos dividir esse prêmio com todo o povo brasileiro e vamos fazer de um jeito que o dinheiro não seja todo gasto na cachaça e com mulherada”.

Tirando a licença poética que me permiti, realmente houve uma diretriz do núcleo do governo para que se pensasse um modelo que permitisse utilizar o pré-sal como alavanca de um desenvolvimento para todos. Por isso afirmo que só isso já valeu meu voto no Lula e vale meu voto na Dilma, que encabeçou este processo. Na apresentação do governo, retirada do site do Ministério das Minas e Energia:
“Objetivo : assegurar para a Nação a maior parcela do óleo e do gás, apropriando para o povo brasileiro parcela significativa da valorização do petróleo.”

2. O modelo do pré-sal
Aos que ainda têm paciência, vou explicar agora o modelo de exploração proposto do pré-sal, em que ele é melhor que o modelo de concessão, porque ele é melhor para alavancar um desenvolvimento para todos e como ele altera a relação de forças na indústria do petróleo e na geopolítica mundial em favor do Brasil.

A proposta altera o modelo de concessão, no qual os ganhos do governo são em impostos e royalties, para um modelo de partilha, no qual a parte brasileira é paga em óleo. Imagine que você seja o dono de um sítio e que você não tem condições de plantar nada nele. Você pode alugá-lo por R$ 1.000,00, por exemplo, e quem alugou pode plantar cana, arroz, feijão, batata, o que quiser. Imagine agora que você descobriu que o seu sítio tem as mesmas características de solo e clima da uva que produz o melhor vinho do mundo, com uma produtividade infinitamente superior. Alugar por R$ 1.000,00 não é mais um bom negócio. E alugar por R$ 10.000,00? Também não, porque o que tem valor mesmo é a uva. O melhor para mim é que minha parte seja paga em uvas. Com a uva eu posso eu mesmo fabricar o vinho. Ou posso armazenar a uva para vender outra hora, vai que o aquecimento global resolva aquecer justamente as minhas terras? Como eu vou ser um grande produtor desta uva, eu poderei influenciar no preço mundial das uvas. E do vinho.

Esta é uma das diferenças importantes entre o modelo de concessão e o modelo de partilha. No modelo de partilha, o estado recebe em petróleo. Com isso, o estado pode utilizar este petróleo para abastecer a indústria nacional de refino, para fazer política industrial, para exportação, etc.

Além desta mudança, alterou também a forma de escolher as empresas que poderão atuar no pré-sal e a forma de atuação. Regras principais (extraídas da apresentação do marco regulatório feita pelo governo):
• União poderá contratar diretamente a Petrobrás para produzir no Pré-sal
• União poderá licitar empresas para participar dos contratos de partilha
o O Vencedor será quem atribuir maior percentual à União
• A Petrobrás terá participação mínima de 30% em todos os poços.

A União fará leilões da área cujo vencedor será aquele que der a maior quantidade de óleo para o Estado. Se as empresas não apresentarem propostas vantajosas para a União, ela poderá contratar a Petrobrás diretamente para a exploração da área. Características gerais:
• A empresa contratada empreenderá por sua conta e risco todas as operações exploratórias;
• A empresa contratada, em caso de sucesso, será reembolsada em óleo pelos investimentos exploratórios e de desenvolvimento da produção, que estarão sujeito a limites preestabelecidos por período;
• O excedente em óleo será repartido conforme estabelecido em contrato.

Os ganhos da empresa contratada, em óleo, serão os custos de seus investimentos exploratórios e desenvolvimento da produção e a sua parte do excedente – total de petróleo extraído menos os custos. O excedente terá uma parte para a empresa, uma parte para a União e 30% para a Petrobrás.

Além disso, a operação de todos os blocos serão realizados pela Petrobrás. Operador é o responsável pela condução das atividades de exploração e produção, providenciando os recursos críticos: tecnologia (utilização e desenvolvimento), pessoal e recursos materiais (contratação), ou seja, quem controla o processo de extração do petróleo - importante instrumento para fomento à indústria local e desenvolvimento tecnológico - é a Petrobras, que pode buscar parcerias para a realização da tarefa.

Um fator crítico para que o modelo seja bem sucedido é a assimetria de informações entre os atores. As informações sobre a quantidade de petróleo que existe na reserva, da quantidade extraída, dos custos da extração são essenciais para que as regras sejam cumpridas. Pensando nisso, o modelo proposto colocou a Petrobrás como operadora de todos os postos, o que faz com que a empresa tenha acesso a informações estratégicas, controle da produção e dos custos (lembrando, os custos são pagos em petróleo) e foi proposta a criação de uma nova empresa pública, que representará a União nos consórcios e comitês operacionais. A empresa deverá ter grande conhecimento técnico e tem como função também reduzir a assimetria de informações entre as empresas e a União. Isso é necessário porque, em muitos casos, os interesses da Petrobrás podem ser conflitantes com os interesses da União, que deve estar preparada para enfrentar o debate.

Por fim, uma outra grande inovação do modelo quando se pensa no objetivo de desenvolvimento econômico e social do país é o Fundo Social. Uma alternativa ao Fundo Social seria que os recursos aferidos com o petróleo do pré-sal fossem diretamente para o Tesouro Nacional, o que o colocaria na mesma lógica de todo o orçamento federal. Este arranjo traria dois tipos de problema: 1) a lógica da disputa pelo orçamento não é necessariamente a que leva ao melhor desenvolvimento econômico e social; 2) poderia injetar uma quantidade muito grande de recursos, o que também é um problema; 3) os recursos do pré-sal são finitos, então é preciso racionalizar seus investimentos para que dure mais.

O Fundo Social seria o equivalente a um reservatório de água. Na época das chuvas, você armazena a água e vai soltando para o consumo aos poucos, à medida que as necessidades vão surgindo. Se você não fizer o reservatório e chover muito, ocorre uma inundação que devasta tudo. O mesmo pode acontecer com os dólares do pré-sal. Se não criar um mecanismo de controle, o mercado pode ser inundado com dólares, gerar uma supervalorização do câmbio e reduzir competitividade. Além disso, o Fundo Social tem o objetivo de direcionar os investimentos para as áreas prioritárias para o desenvolvimento do país, que são: Educação, Saúde, Meio-Ambiente, Erradicação da Pobreza, Ciência e Tecnologia e Cultura.

O Fundo Social será gerido por dois comitês, um de Administração Financeira, que irá definir a política de investimentos do fundo e os resgates realizados pela União; terá um Comitê Deliberativo, formado pela sociedade civil e governo federal, que definirá a utilização dos resgates da União nas áreas prioritárias. O Fundo funcionará da seguinte forma: a) ele é alimentado pelo resultado da partilha de produção que cabe à União, pelos bônus de assinatura de contratos de partilha de produção e pelos Royalties da União em contratos de partilha de produção; b) os recursos do Fundo são investidos no Brasil e no exterior em investimentos rentáveis, garantindo-se uma rentabilidade mínima do fundo; c) anualmente, parte dos recursos são transferidos para a União, em quantidade que não coloque em risco a continuidade do fundo, para investimento nas áreas prioritárias.

Desta forma, garante-se a perenidade dos recursos e os investimentos ao longo do tempo, garantindo continuidade e maior escala às políticas públicas.
Em resumo, a proposta de marco regulatório foi realizada tendo como diretriz o uso do pré-sal para desenvolvimento econômico e social do Brasil e, para seguir esta diretriz, o Governo Lula teve que enfrentar uma série de interesses poderosos, e contrariá-los para imprimir as mudanças que entenderam ser necessárias. Não há nada de automático nisso, há decisão de governo, decisão de enfrentar os interesses contrários e utilizar o poder do Estado para implementar um modelo que seja mais interessante aos interesses do país e de seu desenvolvimento econômico e social.

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